Bombons recheados de cicuta nº03

ilustrações de Bruno Maron
Enigma… enigma… Difícil decifrá-lo, mas, se você souber que enigma é um substantivo masculino, já é, digamos, um ganho e tanto.
Perguntinha, caríssimo-distraidíssimo leitor: Você já foi o et cetera da frase de alguém?
É prodigioso, tudo muito prodigioso – até minha vida que não é, convenhamos, grande coisa, é prodigiosa.
Sempre que escrevo um livro deixo num canto, na gaveta de criado-mudo, por exemplo, um título provisório– sei que mais cedo, mais tarde ele aparece. Foi o que aconteceu semana passada, quando fui atravessar rua movimentada. Tarde calorenta. Fiquei ao lado de um poste, cuja sombra tinha meio metro, quase. De repente, moça-morena-
-bonita pegou carona na minha sombra. Rimos daquela, digamos, intromissão sombria. Sinal abriu. Ela foi; eu, fiquei e anotei no meu bloquinho de rascunhos. nunca mais outra vez noutra sombra.
Não, não foram apenas as palavras daquele escritor, ele também havia caído em desuso.
Tenho, sim, autodomínio. Pena que nunca aparece quando preciso realmente dele.
Fábula de Ambroise Bierce:
Um Leão que havia apanhado um Rato estava prestes a matá-lo, quando o Rato lhe disse:
– Se me poupares a vida, farei o mesmo por ti um dia desses.
O Leão, num ato de generosidade, deixou-o ir. Aconteceu que, pouco tempo depois, o Leão foi apanhado por uns caçadores e atado com uma corda. O Rato, ao passar pelo local e vendo o seu benfeitor indefeso, roeu-lhe o rabo.
Noite quase toda escrevendo um conto, quando, de repente, bodum-cabrum, texto tresandou a mau cheiro insuportável: por causa daquela personagem que ainda não havia sido sepultada mesmo depois de seis páginas seguintes.
Saí de casa – não havia diálogo: ela não me ouvia de jeito nenhum; mas agora vai ouvir minha ausência.
Agora, depois de velho, anoto tudo o que vejo. Se vejo um báculo, anoto: báculo; se vejo um centauro, anoto: centauro; se vejo uma clepsidra, anoto: clepsidra; se vejo uma mulher, anoto: impossível.